Calmaria.

Depois de tanta dor, de tantas perdas, de todas as incertezas e da vergonha, enfim a primavera parecia soprar os tão esperados ventos de mudança. Talvez novos ares estivessem para chegar afinal, trazendo o silêncio e a esperança de dias melhores. Quem sabe enfim a chegava do tempo de paz em meio à guerra estivesse sendo anunciada? Uma guerra a qual parecia ter abandonado, por motivos que poderiam julgar egoístas. Afinal, onde ela estava quando o segundo ataque ocorreu? Onde estava quando Nyx, Edward, Brandon, Meera precisaram dela? Onde estava em vez de proteger aqueles com os quais apresentava esse dever?

Há dois meses Aura havia deixado Licentia mais uma vez, sem qualquer aviso aberto, limitando o compartilhamento de seus motivos apenas à chefe da Diplomacia, e à própria Sunna. E por dois meses, nenhuma notícia foi compartilhada. Não desejava implantar preocupações por um chamado insano de seu próprio coração, assim como apresentara incertezas se ainda seria bem-vinda após a mais recente das perdas.

No fundo, a insegurança ainda ressoava em sua alma. Afinal, eram inevitáveis os olhares que recebia por onde passava. Olhares que carregavam peso, medo, pena e — por falta de palavra melhor —, desconfiança. Afinal, o que uma barda instrumentistas poderia oferecer agora que um braço havia sido arrancado de si? Pergunta essa que por muito tempo a própria draconeza havia se feito, durante o duro processo de readaptação e aceitação.

Todavia, dois meses já haviam se passado desde o acidente, desde o seu próprio encontro com Baru, e nesse meio tempo muitas haviam sido as mudanças. E dentre elas estava o despertar de uma nova visão. Uma que não apenas entendia o seu real papel em meio àquilo, como também a visão compartilhada por Nyx, poucos dias antes.

De certa forma, estava cansada de ter que lidar com a destruição do que tinha como lar, de arcar com o peso da culpa pelas perdas impostas por Arzallum. Ainda assim, era difícil livrar os pensamentos das últimas imagens. Da morte imposta com o seu auxílio, mesmo que em meio a isso uma vida tenha sido resgatada, e uma arma retirada das mãos erradas.

Infelizmente, saber que a finalidade de toda aquela ação era nobre, não amenizava as medidas tomadas. Embora de certa forma tal atitude tivesse servido para recuperar uma confiança perdida. Para alimentar a certeza de que agora, mesmo naquelas condições, seria sim capaz de proteger aqueles que nela confiavam.

E eram acompanhados por esses pensamentos que os passos de Aura se aventuravam pelos corredores, em meio ao silêncio das áreas mais isoladas naquele horário de almoço. Talvez por isso não estivesse tão atenta, imersa em devaneios e sentimentos, e talvez por isso aquela presença só tivesse sido notada por conta de suas palavras murmuradas. Simples, diretas, mas ainda assim sendo o suficiente para despertar a pequena barda e atrair o seu olhar.

Aquele rosto. Ela já havia visto aquele rosto? Algo em si dizia que sim, mas naquele momento sua memória falhava, de modo que nenhum nome lhe veio à mente. E por isso, por alguns instantes, parou, os olhos depositados sobre o rapaz que claramente evitava o tumultuado refeitório licentiano.

E ali, naquele momento, ela sorriu. Não como costumeiramente fazia desde que havia retornado, mas sim de forma espontânea, enquanto movimentava levemente a mão, convocando uma pequena e fresca corrente de vento. Quem sabe assim aliviasse um pouco do calor que fazia naquele fim de primavera, um calor que resultara em resmungos por sua parte.

— Posso me juntar? — Foi tudo o que perguntou, em meio a um sorriso gentil. Todavia, antes mesmo que tivesse uma resposta, lá estava ela, sentada ao lado do licentiano. E embora tudo em si lhe impulsionasse a continuar a falar, experiências recentes deixaram-na em silêncio. Afinal, por vezes isso é tudo o que o outro deseja.

Era engraçado, o modo como as pessoas reagiam à sua presença por entre os corredores, em especial depois daquele segundo retorno para Licentia. Era engraçado como alguns olhares se depositavam sobre seu pequeno e danificado corpo, carregando perplexidade, admiração e até incredulidade. Mas principalmente, era engraçado pensar que apesar de estar há poucos meses vinculada àquela instituição, e menos tempo ainda entre aqueles bruxos, eles a conheciam. Por vezes, parecia até mesmo que era alguém hierarquicamente importante, e não uma mera ouvinte ali dentro.

Pensar nisso a fazia rir, às vezes. Não sabia ao certo em que momento aquilo havia acontecido. Quando exatamente deixou de ser apenas uma garotinha caminhando pelos corredores, para se tornar alguém que despertava aquele tipo de reação?

Por isso, em meio a falta de respostas visuais e verbais imediatas daquele rapaz, a barda apenas sorriu, já preparando uma chuva de perguntas e comentários. Algo que era praticamente incontrolável, considerando-se quem ela era. Mas antes mesmo que pudesse terminar de afastar os lábios, e pronunciar qualquer palavra, algo verdadeiramente inesperado aconteceu.

Uma aproximação, acompanhada de um esticar de braços e palavras gaguejadas que deixaram a jovem Aura no mínimo confusa. A cabeça até mesmo chegando a tombar para o lado, deitando sobre o ombro esquerdo enquanto erguia a própria mão em cumprimento da licentiana. Chegava até mesmo a prender um pouco o riso, pelo uso do termo fã. Afinal, o que é que havia feito para ser digna de tal admiração?

— Muito prazer, moça. Como está o seu dia? — Sorria, de forma aberta, com os olhos parcialmente fechados. Está até mesmo um pouco envergonhada por toda aquela atenção, o modo como o olhar acabava por voltar para si.

Estava tão surpresa em meio a tudo isso, que sequer havia reparado na chegada de Edward no refeitório, oferecendo sua total atenção à de cabelo rosado. Um rosto que assim como o do rapaz, não era completamente estranho. Mas um dos maiores problemas de ter passado mais tempo viajando do que na própria Ordem era justamente esse, o fato de conhecer muitos rostos, e poucos nomes.

— Acho que tenho um pouco de culpa nisso, né? O espírito de aventureira sempre me leva pra longe. — Brincou, voltando a sorrir. — Mas agora eu estou aqui, poderá me ver e falar comigo quando quiser. Por sinal… —  Empolgada, a pequena mantinha a cabeça levemente tombada, de modo a manter um maior contato visual com aqueles novos conhecidos, e antes que pudesse continuar sua fala… bom, um misto de coisas.

Para começar, Edward havia chegado e já se ajeitava, como se aquela fosse a sala de sua própria casa… o que de certa forma era uma verdade. Uma feliz surpresa, principalmente ao se considerar que desde que Aura havia retornado, pouco eles haviam conversado.

— Bom te ver, Ed. — Cumprimentou, mais uma vez sorrindo, e logo realizando uma concordância com a cabeça. Apesar de não conhecer exatamente as outras duas figuras, para ela era natural a ideia de amizade, então não se importava se estaria apressando um pouco as coisas naquela resposta gestual.

Mas antes que pudesse voltar a falar qualquer coisa, miados e uma pequena briga de gatos se deu, roubando uma bela gargalhada por parte da adolescente.

— Que bom que algumas pessoas não tão aqui pra ver isso, né Ed. Sua fama não iria melhorar nada com esse comportamento do Froppy. — Brincou, uma vez mais, recostando-se na espécie de sofá, permitindo que a cabeça repousasse ali.

E assim, mais uma vez, se voltou para o rapaz mais novo — Mas ainda assim que parecia mais velho que ela.

— É um prazer, moço Ayato. — Àquela altura, a barda sequer fazia questão de esconder a falta de um dos braços, arrancado no início daquela primavera, chegando até mesmo a erguer apenas o ombro com o tecido que lhe cobria. — E então, empolgados com o dia de hoje? Eu estou, pela primeira vez em muito tempo a Nyx não está me chamando para alguma coisa. Enfim um dia de folga. — E lá estava ela, falando e falando sem parar.

Para aqueles que já a conheciam, nenhuma surpresa. Agora para quem olhasse de fora, ou para quem estava tendo um primeiro contato com a pequena… bom, aí a história poderia ser outra. Mas Aura não parecia se importar muito com isso, visto que estava sempre sorrindo enquanto buscava apenas se descontrair naquele dia.

Depois de tanto tempo, depois de tantos imprevistos e caminhos traçados, Aura estava de volta àquela que havia se tornado a sua casa. E como era bom estar em casa, embora fosse igualmente estranho.

Todos os olhares que recebia, toda mudança na forma com a qual era tratada — fosse pela última conquista ou pelo membro que lhe faltava —, tudo era estranho. E por vezes até mesmo engraçado… o que, bom, acabava por ser o caso em meio àquele peculiar encontro.

— Você terá muitas oportunidades para isso. — A resposta para Himiko ecoou em meio a uma risada. Afinal, desde o último ano a barda se dedicava inteiramente a ajudar e proteger, mesmo que por vezes suas ações pudessem ser vistas com certa dúvida. — Realmente nunca faltam feridos em Licentia, esses vanguardistas gostam do perigo. Gostam até demais. — Os olhos se reviraram, e nesse instante repousaram sobre Edward e Brandon, antes de dar uma risada.

Desde que havia retornado de sua temporada em Drakir, a pequena por vezes havia sido encaminhada para algumas missões a mando de Nyx, acompanhando a Vanguarda na linha de frente em relação ao combate com os magos e feiticeiros. Não era uma tarefa que ela gostava, mas ainda assim era algo necessário, e por isso jamais recusava. Ela sabia muito bem o quanto uma ajuda que fugia da força bruta era necessária nessas situações, e por isso ficava contente pelo interesse da de cabelos rosados.

— Esse aqui, por exemplo, vive se metendo em encrenca. Né, senhor Edward? — Brincou, franzindo um pouco a testa, antes de rir. — Até no refeitório a encrenca o encontra. E não pense você que esse episódio não vai se espalhar, porque com certeza Licentia inteira irá ficar sabendo que seu gatinho é tão encrenqueiro quanto o dono. — Seus olhos se fecharam, e de forma travessa a língua foi exposta, antes que a draconeza pudesse se recostar no banco e deslizar um pouco para baixo.

Na mão, um pequeno sanduíche era amassado, antes de ser levado aos lábios e saboreado. Era raro, desde o seu retorno, um momento de descontração pura, sem preocupações, culpa ou vergonha.

— Mas e você, Brandon? Meera já te deu uma folga ou ainda está em segurança? — Questionou, balançando os pés e um pouco a cabeça, em um ritmo que apenas a música em sua cabeça era compatível.