Os passos de Lione eram praticamente inaudíveis. O treinamento, a leveza da morte que constituía o próprio corpo, a própria magreza da sangna contribuem para isso. Não que fosse fazer diferença, não quando a de cabelos platinados vagava pela cripta dos Gorlami. Um lugar melancólico, mórbido e belíssimo por causa disso. Muitos pensavam que o clã cultuava aquele lugar em homenagem aos que caíram em batalha ou foram usados como exemplo na antiga tragédia. Não estavam errados… Mas não sabiam também do segredo que aquele lugar escondia.

Lione adentrou a passagem que dava acesso ao Coágulo, uma guilda formada basicamente por seu clã sangnatae para proteger o território e os interesses da raça, desvinculados teoricamente à família. Por ser algo tão reclusivo, Lione não encontrou nenhum outro de seus familiares por ali, gerando um silêncio colossal pelo ambiente. No entanto, era justamente isso o que a sangna procurava.

Por vezes, precisava de um momento a sós, fazendo coisas que costumeiramente não realizaria em seu cotidiano. Não se surpreendeu quando os pés a levaram até a biblioteca do Coágulo, pois não era uma estratégia rara amenizar o tédio da imortalidade com leituras aleatórias.

— Vamos ver… — Ela deixou os dedos deslizarem pelos volumes colocados na prateleira, passando por sessões de literatura, história, livros técnicos, outros tão antigos que ela não compreendia a leitura. — Oh? Um compêndio de criaturas?

Lio capturou o livro e o folheou, fazendo um som de agrado no fundo de sua garganta. Caminhou quase sem notar o trajeto, já o conhecendo de memória. Procurou por um dos inúmeros acentos confortáveis, optando por uma das poltronas grandes e estupidamente macias. Jogou-se ali e cruzou as pernas, ficando pronta para a leitura.

— Vamos ver o que as Cordilheiras escondem.

O compêndio começava com algo chamado Argunuman. Um desenho estava feito na página ao lado, de uma criatura felpuda, boca cheia de dentes, olhar malvadinho e provavelmente de tamanho considerado. Uma fofura no ponto de vista de uma sangnatae, que via ali uma máquina de morte por sua capacidade de camuflar com a neve. Lione não evitou o revirar de olhos quando viu uma espécie de lobo monstruoso, algo nomeado Articran. O ódio natural aos makuh’rianos quase a fez virar a página sem ler sobre a criatura, mas prosseguiu principalmente quando encontrou o parágrafo sobre o veneno contido no ferrão: provocava paralisia e a sensação de extremo frio.

A leitura prosseguiu, sustentando levemente a curiosidade de Lio. Era um passatempo mediano, apenas para sair um pouco da guerra política e de provocações do lado externo. Não se engane, Lione amava o caos e a intriga, talvez não tanto quanto um Rosier o faria, mas sabia apreciar uma boa trama quando surgia. Mas, novamente, a eternidade podia ser bastante entediante.

A sangna passou por algumas páginas, mais concentrada em ver as imagens desenhadas do que ler as informações gerais. Até que se deparou com algo que a fez parar. A imagem era de um grande felino, com ossos sobressalentes de seu corpo, como estacas naturais extremamente perigosas.

— Olá coisinha linda. — Murmurou enquanto voltava o olhar para a descrição da criatura.

Aquele era um Tiamur, um felino grandioso que residia nas cordilheiras, tão territorialista e perigoso que o principal predador daquela raça… Eram eles mesmos. Eram sanguinários! Ao ponto do pelo branco geralmente está coberto por sangue, o destacando em meio a eterna neve que cobria aquela região de Badur. Nem mesmo os filhotes eram perdoados ou bem tratados, eram ensinados o básico de sobrevivência e largados no mundo para provarem o seu valor. Uma criatura incrível, não é mesmo?! Lione concentrou a leitura cada vez mais sobre aquela espécie, aprendendo sobre o tamanho e hábitos, sobre como a ossada externa também servia como uma arma.  Oh mas garras talvez fossem a coisa mais danosa, sendo capazes de perfurar carapaças de puro gelo maciço.

Violentos, perigosos, territorialistas… A sangna estava sorrindo encantada com a espécie, imaginando como seria glorioso domar algo como aquilo. Procurou por um mapa, buscando tentar associar o local descrito no livro com o que possuía de informações no mapa. Circulou algumas possibilidades antes de se jogar contra a poltrona, satisfeita com o resultado da pesquisa.

Ainda continuou folheando o livro, agora ainda mais interessada nas criaturas agressivas e perigosas das Cordilheiras. Quase teve uma crise de riso sozinha, ao ver o desenho de uma Movívera, uma criatura marinha que tinha uma face terrível, mas engraçada. Pensou se seria um xingamento chamar alguém de filho de Movívera e deu de ombros, aquilo era culto demais para o seu próprio gosto. A criatura, no entanto, conquistava o respeito da sangna por ser um terror dos mares, ela odiava navegar justamente por coisas como aquela, habitando o oceano de maneira misteriosa e perigosa.

Ao se dar por satisfeita, Lione fechou o livro e o guardou, caminhando novamente para a saída da guilda e retornando aos seus afazeres.