Ora, ora, ora. Veja só quem retornou para o seu purgatório. Já fazia um tempo desde o seu último episódio, não é mesmo? Não… espere, não havia tempo naquele lugar. Não há ontem, hoje ou amanhã, mas enfim, você entendeu o que eu quero dizer. Ela havia desaparecido, ninguém mais a havia visto desde o dia da história, mas agora ali estava…

As vozes imaginárias dos fantasmas de sua vida sussurravam em sua mente. Riam, debochavam, gritavam, lhe condenavam… vozes essas que se misturavam, sufocando e soterrando os próprios pensamentos. Ela agonizava, e por vezes delirava, gargalhando em aleatoriedades, ali, bem no meio da preça.

O corpo curvado. As mãos fechadas ao redor de uma ocarina envelhecida e parcialmente destruída. Tocava a pior das melodias, trocando notas, errando acordes, invertendo graves e agudos, enquanto ao redor a plateia rastejava e gritava. Mas nada disso importava, afinal, em meio à tanta decadência, em meio às almas arrastando-se no chão, brigando por migalhas, restos de qualquer coisa minimamente utilizável, a tenebrosa melodia parecia perfeita para reger o espetáculo das mortas vidas mundanas.

Sobre o chão, aos seus pés, um pequeno chapéu furado e desbotado, como parte dos trapos trajados. Se afogava, em meio aos caos da própria música, cessando a tortura sonora apenas para outra vez gargalhar. Ah, mas o silêncio nunca se estendia, uma, duas, três risadas e novamente estava a tocar. Por vezes até mesmo se arriscava a dançar, entre os corpos desconfortáveis, que até mesmo buscavam lhe agarrar.

Mas já estavam tão fracos, patéticos, que bastava um passo para lá, outro para cá, e mais três em outra direção qualquer para se livrar.

Ao menos até aquela intromissão. Uma bastante ousada, é preciso dizer. Nada de gritos vazios ou sons sem sentidos, em vez disso um chamado seguido de comentários que a fizeram sorrir, parando por um instante, retirando a flauta dos lábios e realizando uma simples reverência.

— Que fala mais tola. Como não? Não percebes que conduzo todo esse espetáculo dos desolados? — As palavras escapavam, em meio a pequenos sons de risadas, enquanto o sorriso se alargava — Alguém precisa entregar o está aqui, não é? — O indicador repousou sobre a têmpora, dedilhando algumas vezes, até que fosse a vez de Ay’la de se aproximar.

O olhar de quem claramente começava a ser afetada, perturbada pela eternidade no Iriokar, observava aquela figura. Um rapaz, um que muito se diferenciava dos demais. Não rastejava, não brigava por restos intragáveis…

— Interessante… muito interessante. — Sussurrava ao rodeá-lo. — E quem é você? Veio aqui me apreciar? Junto aos dançarinos do mundo? — Sua mente já estava se perdendo. As próprias palavras não apresentavam um grande sentido. Ainda assim, era possível ainda sentir a curiosidade por trás de tal homem diferenciado.

Se por um lado as vozes sufocadas retomavam à medida que a música se ausentava, por outro o silêncio ainda assim se instalava. E a culpada  disso tudo era a curiosidade. Afinal, qual que fora a última vez que havia se encontrado com alguém tão são? Difícil de dizer. Talvez tenha sido aquela outra… aquela decadente de quem já começava a se esquecer… é, talvez.

Mas agora ali estava, diante dele: Urie, o dono do puteiro. Sem dúvida um estabelecimento promissor naquela ilha, ao se considerar o fato de que por vezes o sexo era o único alívio encontrado. O que fazia do rapaz, quem sabe, alguém poderoso em potencial. Alguém interessante de se ter por perto, inclusive.

E por isso o sorriso aberto se conteve, transformando-se em um mais sutil enquanto ajustava a postura um pouco melhor. Uma longa piscada aqui, um contorcer de cabeça ali, mediante às vozes e dores que perseguiam sua mente, nada demais. Nada capaz de impedir a pequena risada a respeito dos comentários sobre sua pessoa.

De fato Ay’la não era o tipo que se preocupava com as violações carnais tão comuns e rotineiras. Afinal, possuía lá seus meios de lidar com tudo aquilo, meios esses que tornavam os diversos episódios… divertidos, para ela. Até porque, cada um precisava encontrar os seus meios de sentir algum prazer.

— Eu? Ah, aqueles que ousam tentar, convido para dançar. — Respondia, em um cantarolar desafinado, aproximando mais uma vez a flauta dos lábios, antes de abaixá-la, mediante à ofensa delicada, com a qual não se importava.

E de repente, uma nova risada. Alta e clara.

Aliviar as almas? Não… não era por isso que fazia o que fazia, que agia daquela forma. O fazia por egoísmo, por entretenimento. Não era cega, ou tola. Era capaz de observar as mãos nos ouvidos, os gritos de agonia, reclamações e as fugas mediantes às suas melodias. Mas não era para eles que tocava, eles apenas faziam parte do seu espetáculo que lhe entretinha.

— Mas são essas aqui, essas vozes que importam, e que aplaudem, que se calam pra me ouvir. — Mais uma vez, levava o indicador até a têmpora.

Todavia, àquela altura, os passos do rapaz já começavam a se afastar, gradativamente, após um… convite?

Os olhos se reviraram de forma divertida, antes de tentar recolher o chapéu surrado e furado jogado ao chão que já não estava mais ali. Um segundo de desvio de atenção e outra migalha já havia sido roubada. Era sempre assim

— Pode vir a ser divertido. — Guardando a flauta em uma pequeno bolso interno do sobretudo, acompanhava, em meio a um saltitar curvado e confuso. — Mas me diga, o que é que que queres de mim? Dos guardas aos rastejadores, todos desejam alguma coisa. — Intrigada, ainda o observava, acompanhando, soltando pequenas risadas por razões que somente ela entenderia.

Tudo no Iriokar possuía um preço. Nenhuma ajuda, nenhuma oferta, era por bondade. Segundas intenções e ilusões regiam aquele lugar, quase como uma lei. Afinal, não havia bondade naquelas terras. Então qual seria o custo daquele ato?

Dentre todas as respostas, sem dúvida aquela era a mais inesperada e surpreendente para a desconfiada figura. Ela, cujos passos até mesmo cessaram momentaneamente, e que chegava a limpar os próprios ouvidos, certificando-se de que havia entendido corretamente, não conseguia acreditar. Como assim não queria nada?

— Hã? — Ainda assim o som inevitável ecoou, baixo, confuso, incerto a respeito do que havia acabado de ser dito. Talvez em algum momento gestos como aquele poderiam ter sido considerados naturais, talvez enquanto ainda habitava o plano terreno… talvez. Mas agora se encontrava em outro lugar, e somente isso já era o suficiente para que entendesse que aquele ser não era alguém comum, que ele não era como os demais desencarnados. — Alguém que pode me ensinar, não é? Você é um sujeito interessante… — Uma pequena risada acompanhou aquelas palavras, enquanto mais uma vez apressava os passos, alcançando-o após um cruzar de esquina.

E talvez, se a situação fosse outra, se as palavras a respeito dos Barões não tivessem sido ditas no momento certo, confusão e perplexidades tivessem lhe envolvido. Todavia, não foi esse o caso. O explicar breve a respeito daquelas figuras, e em especial o citar envolvendo a Baronesa da Justiça, acabou por despertar o seu mais completo interesse. Já havia ouvido histórias, e até mesmo partido em busca de algumas delas, todas envolvendo aquela pessoa. Ela era um dos alvos de seu entusiasmo, sem dúvida.

Sua atenção havia sido tomada de forma tão repentina que foram necessários alguns minutos para notar, realmente, a diferença daquele lugar. Eram tantas almas, eram tantos deles vestindo mais do que farrapos. Além disso, onde estavam os gritos? Os lamentos? Os olhos percorreram aquele cenário, curiosos, interessados no que mais poderia estar oculto, quando então foi a vez Urie revelar o seu interesse.

O chamado Barão da Carne. Aquele cujo domínio eram as terras do Sul. Aquele, que segundo o fantasma, não era lá um amigo, aliado ou subordinado do Barão da Coroa. Ela não conhecia muito a respeito de tal líder, apenas havia ouvido falar por alto, em uma ou outra conversa. Até onde sabia e deduzia, parecia ser bastante popular entre os que se encontravam insatisfeitos consigo mesmo, com seus corpos, que buscavam por… melhorias, por assim dizer. Mas até que ponto era mito ou verdade? Isso ela desconhecia.

Todavia, aquele rapaz, aquele fantasma parecia saber bastante a respeito, visto que possuía uma opinião bastante contrária ao que parecia ser o modo como tal Barão agia. Uma que poderia ser impopular, dependendo do núcleo escolhido.

— Escravos? Curioso… muito curioso. — O questionamento ecoou, quase que ao mesmo tempo em que uma alma qualquer havia iniciado uma outra conversa, uma que não lhe interessava. — Sempre ouvi que era um grande prestador de serviços. — Uma breve gargalhada ecoou, acompanhada por um piscar frenético e balançar de cabeça. As vozes gritavam, e as dores retornavam cada vez de forma mais intensas. — Então é esse o seu custo? Mas é claro que não seria barato algo assim. — Completou, falando mais consigo mesma do que com o novo conhecido em si.

Conseguia se recordar, mediante um certo esforço, sobre as primeiras histórias, ouvidas nas margens do Rio das Lamentações. Duas figuras, desesperadas, deformadas, resmungando sobre o quanto desejavam uma aparente falsa benevolência do Barão, para recuperar o que havia sido perdido: alguns dedos, uma perna, até mesmo um braço completo. Mas na época o nome usado havia sido outro, algo envolvendo taxa, imposto… não, isso era de outro lugar.

Tributo. Sim, havia sido esse o termo utilizado. O que na época não havia feito muito sentido, mas após ouvir a fala de Urie… bom, começava a fazer. Um tributo, um custo, um preço… uma troca por aquilo que mais desejasse fazer com seu próprio corpo.

O Barão do Tributo. O Barão da Carne. O Antigo… todos nomes para uma mesma coisa.

O sorriso em seus lábios aumentava, em diversão, ao pensar a respeito do que tal figura poderia ser capaz. Encontrava-se perdida, em devaneios, lembranças e vozes em sua cabeça, sendo apenas despertava mediando uma nova fala, uma pergunta.

— Quê? Ah, mas é claro. Não dá para perceber que sou Ay’la, a super confiável? — O social não era o seu forte, e apenas o sorriso distorcido e o olhar enlouquecido já bastavam para fazer qualquer um duvidar de si. — Mas me diga, em que tenho que ser confiável? E o que você tem contra esse Barão? Sendo dono de um puteiro, achei que fosse se familiarizar com alguém que carrega o título justo de Barão da Carne.

Código:

756 Palavras
Treino de História: Barão do Tributo (Barão da Coroa)
Treino tutorado por Urie

A risada ecoou, sendo seguida de uma caricata expressão de tristeza mediante à direta resposta. Mas não, não havia ofensa em si. Ainda assim, sentia uma certa vontade de estender um pouco mais aquela brincadeira, aquele jogo. Porém antes mesmo que pudesse vir a retrucar, novamente o Barão havia tomado conta da conversa.

—  E eu que sei? Tem gente que venera a Baronesa, vai saber o se passa em sua cabecinha. — Encolhia os ombros, enquanto depositava um olhar quase penetrante sobre Urie.

Mas então ele disse. Ele disse aquilo. E ela paralisou. Sua expressão antes perturbadora se desfez, dando lugar ao vazio e à tristeza iminente. Afinal, fora uma escolha errada a responsável por lhe condenar àquele lugar. Fora tudo graças a uma sentença de uma deusa na qual antes acreditava, e que agora sequer conseguia se recordar o nome.

— Não há saída… — O sussurro ecoou, em desalento, pela primeira vez. A postura antes concertada, voltava a se curvar, e o olhar se desviava para o chão, para as mãos que tremiam…

Os passos àquela altura eram mecânicos. O corpo agia no automático, seguindo a outra figura, sem se preocupar com o levantar da poeira e o imergir na escuridão. Por um instante, até mesmo chegava a esquecer de porque estar fazendo tudo aquilo. Mas a razão não tardou para lhe ser lembrada.

—  Um Templo… que irônico. — Disse, em meio a uma leve risada, repassando em sua mente a condenação por ter buscado enganar uma divindade. Quando foi mesmo que havia sido isso?

Os dentes rangiam, enquanto buscava se recordar, sendo calados apenas quando os guardas foram avistados. Nesse instante, a cabeça se abaixou ainda mais, e os passos seguiram arrastados. Suas experiências com aquela gente não eram das melhores, e sinceramente, não queria mais uma dose de tortura naquele dia…

—  Mas me conte, conte sim. Você pretende algo contra esse Barão, é? Parece ter uma raiva um tico particular por ele. — Voltando a sorrir de forma quase paranóica, as palavras foram sussurradas mediante ao afastar das figuras de autoridades.