328, Era.
Redoma dos Exaltados.
Bonaire & Thori (NPC).
Bonaire volta a visitar a Redoma dos Exaltados, possivelmente o único local fora de Gaa'Nalt onde ela se sente confortável.

O virote luziu e se afundou na serragem que preenchia o boneco de treinos. Estava desapontada consigo mesma, além de ter deixado os virotes pegos emprestados muito mais gastos do que quando os recebeu diretamente da mão de Thori. Seu avanço tinha sido quase nulo, incapaz de cumprir a meta estabelecida: de acertar todos os três virotes no mesmo alvo antes de completar uma batida de seu coração. Mas as coisas simplesmente não se encaixavam. Ora falhava a besta, emperrando seu mecanismo de tiro; ora falhava ela, tropeçando, afoita, ou então deixando cair os virotes encaixados às pressas. Tentou, tentou e tentou, falhando miseravelmente em todas suas tentativas. Até que os aplausos de Thori ecoaram, coroando sabe-se-lá-o-que. Estivera ela espreitando todo esse tempo? Bonaire sentiu-se subitamente envergonhada pela atenção dada a ela, que pretendia passar desapercebida por tanto quanto fosse possível até estar pronta para voltar a seu lar, forte o suficiente para não depender da irmã, forte o suficiente para vingar o pai, para não perder mais ninguém, para ceifar o Kraken como ele fizera com tantos de seu povo. O turbilhão de pensamentos estacou de forma abrupta, enquanto ela baixava a besta na mão indo aos alvos para tomar de volta os projéteis.

— É feio bisbilhotar uma dama. — Disse, encaixando um dos virotes na arma, checando o mecanismo e então deixando os outros dois entre os dedos da destra, a forma mais rápida que havia encontrado para dispará-los em seguida. Contou os passos até o seu alvo e se distanciou o suficiente para que o disparo chegasse ao alvo, mas se destruí-lo com a mesma força de um ataque à queima-roupa.

Prostrou-se em linha reta, suas costas queimadas de sol ligeiramente arqueadas, para dar força ao tiro e para que seu corpo pudesse se ajustar ao coice sutil da arma. Dois dardos, usaria dois dardos. Tinha tentado outras vezes e visto que dava certo.

Ativou o mecanismo da besta, lançando o primeiro virote contra a cabeça cheia de enchimento do boneco-alvo, dando um passo largo à esquerda, engatilhando a besta novamente e lançando o segundo disparo, um disparo duplo. Duas setas se cravaram bem no peito estufado de serragem, se afundando. Com dois outros virotes ainda na mão, decidiu arriscar mais um tiro. Lançou um olhar sobre os ombros. Thori ainda estava lá, observando com um semblante que não deixava transpassar coisa alguma. Era mera curiosidade? Aprovação? Não importava a Bonaire.

O suor brotava da testa. Com exceção destas últimas exibições ao olhar de Thori, estivera praticando por algum tempo, não muito, mas o suficiente para que seus braços começassem a reclamar do esforço de segurar a arma.

Extraiu suas últimas gotas de energia, afastando momentaneamente o cansaço e se posicionou diante dos alvos uma última vez. Sem displicência agora. Sentiu o vento, encontrou uma posição confortável para alinhar os pés e encaixou sua melhor postura. Fechou os olhos, trouxe a besta ao peito, respirando a brisa quente da ilha. Sua observadora ecoou um som ininteligível — um riso?

Com os pés colocados rentes um ao outro, deu um salto adiante, encaixando os virotes em meio ao movimento. O vento impeliu seus cabelos para trás, balançou as vestes e ameaçou perturbar a perfeição de seu equilíbrio. Vamos lá, um bom tiro para terminar o dia. Somou ao salto uma cambalhota desengonçada, mas conseguindo aterrissar sem espatifar-se no piso de pedra, encurtando a distância até o alvo, um movimento que deveria ser uno com o tiro, pois o segredo não estava em manejar a arma corretamente e sim em coreografar os tiros de modo que saíssem o mais natural possível entre seus movimentos de corrida, saltos e afins. Seus dois projéteis voaram adiante, impelidos pelo som zumbido da corda os empurrando com toda força. A proximidade os fez atravessar com facilidade o tecido, o enchimento, batendo na parede com um som que os fez ricochetear e encontrar o solo naquela breve viagem.

Thori se recolheu, subitamente desinteressada do treino. Ou satisfeita. Vai saber. Bonaire recolheu os virotes, devolvendo-os, junto com a besta, ao arsenal da casa de armas.

Quando a hora chegasse, estaria pronta.

- Treinamento de Besta.

Thori gostava de observar Bonaire praticar em seu pátio. Mas o “Por que?” permanecia um mistério à ganaltiana, que preferia deixar de lado as suposições sobre a encarregada da casa de armas e se dedicar única e exclusivamente ao seu aprimoramento pessoal. Desde a infância, sob as redomas de ar, na sombra do palácio de Gaa’Nalt, lembrava-se da lutadora inapta que era. Sua domínio era a língua afiada e a atitude desafiadora diante dos adultos. Mas acabou por perceber, da pior forma, que seus modos não poderiam proteger aqueles de quem gostava mais. Seu corpo se movia com a mesma graça de uma pedra, rígida, de postura quebradiça.

Naquele dia, a mulher de aparência robusta finalmente resolveu pisar na arena junto com a ruiva. Antes disso, não tinha percebido os músculos aparentes que a camisa sem mangas só fazia evidenciar. Seus passos pesados enganavam a princípio, passando a imagem de uma lutadora lenta. Bonaire leu aquelas intenções antes mesmo que fossem projetadas dentro do pátio, guardando a besta e suspendendo sua prática usual, ficando de mãos nuas para o que estava por vir.

— Sabia que essa hora chegaria, eventualmente. — Bonaire desatou os botões do colete preto manchado de sal e sol que vestia, jogando no piso de pedra do pátio. Vestia calças largas preta e uma camisa branca com botões, que abotoava somente até o penúltimo. Vestes de marinheira, embora não fosse uma de verdade.

Thori intendia pegá-la de surpresa, logo percebeu. Surgindo como um borrão no flanco esquerdo da ganaltiana, desferiu um soco firme no braço esquerdo, que mesmo lido previamente não pôde ser defendido. O primeiro golpe parecia um aviso. Ambas se afastaram depois disso.

— Você vem aqui quase todos os dias. Em honra a essa dedicação um treino especial: desvie de golpes consecutivos. — A fala era mais uma ordem do que uma sugestão, embora Bonaire tenha percebido que havia nas palavras um rumor de empolgação.

A próxima ofensiva veio em dois tempos. Um soco lento e pesado na altura do rosto, facilmente esquivado, ainda que por reflexo, seguido de outro golpe, mais ardiloso, novamente alvejando o braço esquerdo. Bonaire emitiu um grunhido entre dentes, recuando para a segurança de distância. Naquele ritmo ficaria cheia de hematomas e só tinha tomado dois golpes. Parou e pensou, relaxando a postura. A única estratégia viável seria cansá-la até o ponto em que seus golpes ficassem cada vez mais lentos e assim poder desviá-los. Porém a perspectiva parecia cansativa e, acima de tudo, dolorida demais.

Não podia forçar seu corpo a um estado de adrenalina, tampouco forçar-se a lutar por instinto de sobrevivência, pois sabia não estar à beira da morte.

Mais golpes, sem tempo para seus pensamentos intermináveis. Thori tinha braços largos e pesados, a mera visão evocava dor em Bonaire. O primeiro golpe seguiu o padrão do anterior, cronometrado para dar espaço a segundo, mas tinha de escolher entre tomar um ou outro, pois era tudo que sua velocidade permitia.

Chegando mais perto, o soco beijou suas vestes, resvalando na extremidade da manga esquerda da camisa. Bonaire conseguiu dançar para trás, evitando o primeiro. Quando tentou evitar o segundo, jogou-se no chão para trás, pousando sobre as costas, rolando nos cotovelos para evitar a próxima sequência, tentando enunciar o tratado de anteriormente. Entre dentes, enquanto rolava, proferiu “eu já desviei”, mas Thori continuou atacando. A princesa conseguiu colocar-se de pé, a tempo de visualizar o poderoso punho da instrutora passar acima de sua cabeça, roçando nos cabelos impelidos para trás e acima, pelo vento. Ela não vai parar até me acertar, percebeu. Mas o pensamento, no momento oportuno, a traiu. Caiu arfando, o impacto do golpe chegando ao seu estômago. Ficou de cócoras no pátio por um tempo, retomando o fôlego.

Dando as costas, a instrutora saiu do pátio, batendo a poeira das vestes, visivelmente satisfeita com a breve surra que aplicou em Bonaire.

- Treinamento de Destreza.