Muito tempo havia se passado. Quando se vive no mar, sem uma moradia fixa ou perspectivas muito claras para o futuro, indo de um lado para o outro se importando apenas com o saque seguinte, com uma próxima parada e com o que os tesouros conquistados seriam gastos, a própria noção desse tempo começa a se perder. A única coisa que precisava saber era o período em que se estava e o seguinte, para saber como o mar se comportaria, e nada mais. Tinha dificuldade de separar sua vida agora nesses períodos, e ainda mais tendo o sentimento de ter vivido duas delas. Uma antes e uma depois de virar um imortal. Na verdade, era precisamente assim que conseguia distinguir as coisas.

Faziam alguns anos, disso tinha certeza, apesar de não conseguir precisar quantos. Se sua memória não lhe falhava, havia deixado o Vale dos Imortais onde havia despertado e tentado viver como um deles há não muito tempo quando aquilo ocorreu. Após fugir com seu navio em direção a Havir, a primeira tripulação capitaneada pelo pirata foi reunida. Formada por simples, mas experientes pescadores e comerciantes pesqueiros que por capricho do destino se reuniam no porto Mamburiano no momento em que Sebastian tentava inspirá-los à uma vida em busca de algo maior.

Era sua primeira empreitada como capitão. Tinha experiência de sobra no mar e com seus últimos anos também havia aprendido a ser um líder, mas ainda assim talvez nem aquilo fosse suficiente pra lhe tornar completamente preparado.

Uma decisão falha, talvez por orgulho ou confiança em excesso, e seu recente primeiro imediato, a quem havia se afeiçoado rapidamente, encontrou seu fim prematuro nas mãos de seu inimigo jurado. Poderia ter interferido antes, talvez se importasse mais com a honra do homem do que havia se importado com a vida dele na ocasião e até hoje se perguntava se aquela havia sido a melhor decisão. ‘Aquilo’ nunca deixaria que se esquecesse disso.

Encarava aquele olho assim como havia feito a tanto tempo atrás. Sua voz tão clara e invasiva quanto havia sido naquele dia.

- Está arrependido? Deveria ter aceitado minha proposta... Teria sido tão simples...

Tentava falar, tentava responder, mas suas palavras não saíam, é como se seus lábios estivessem costurados ou se quer existissem. Tentou levar as mãos à própria boca mas parou no meio do caminho, sua atenção voltando-se para o corpo sem vida à seus pés que apenas agora percebia.  

- Ele não era um pescador? Você o trouxe até aqui... De quem será que é a culpa?

O homem corpulento que um dia havia lutado a seu lado a tanto tempo tinha no rosto uma expressão, porém da qual não se lembrava. O profundo ressentimento, transparecia mesmo através dos olhos cinzentos e completamente estáticos, seu ferimento fatal aberto e fresco como se houvesse acabado de ser aberto. Olhando para as próprias mãos, Sebastian via aquele mesmo sangue escorrendo por elas, segurando a adaga enferrujada que havia sido usada por Tigs para apunhala-lo naquela mesma ocasião.

- No fim tudo será destruído, tudo será consumido, e eu ainda terei o que me negou... Mas ao menos, poderia tê-lo salvo, ter feito a coisa certa e consertado seu próprio erro.

O pirata novamente encarou o grande olho vermelho que se estendia sob vasto oceano, agarrando com força a adaga em sua mão, seus olhos brilhando com a raiva que aquilo lhe fazia sentir, sem poder dizer uma palavra. Não sabia o que, ou quem era aquilo, mas sentia a centelha em seu peito brilhando e ardendo em seu peito. O repudiava com todo o seu ser e havia apenas uma forma que conseguia reagir naquele momento. O capitão pulou em direção ao mar, assim como havia feito da primeira vez, mas desta vez não para enfrentar um pirata traiçoeiro, mas algo muito diferente.

Ainda conseguia ouvir aquela mesma voz rindo enquanto sumia dentro da própria cabeça quando finalmente acordou. A marca em seu peito reagia, brilhava visivelmente mesmo por baixo de suas vestes, apagando-se pouco a pouco conforme se recuperava. Por que aquilo havia voltado novamente? Havia sido a tanto tempo, mas ainda assim lhe incomodava de maneira tão intensa. Não estava acostumado a ter aquele tipo de reação, mesmo o medo e a raiva sempre se atenuavam, mas então por quê?

Podia ouvir um burburinho já do lado de fora de sua cabine, a luz clara entrando pelas pequenas brechas das madeiras e vãos da porta. Havia dormido demais e perdido a hora? Levantou-se calmamente de sua rede, pegando seu chapéu característico e pousando na cabeça, antes de também tomar sobretudo do encosto da cadeira para vesti-lo enquanto se dirigia a saída e começava a conseguir distinguir o que falavam.

- ...eu to te falando, ela levantou da porra do meio da água. Eu passei o dia cuidando do navio, não tem COMO ela ter entrado lá e eu não ter visto.

- Eu também lembro desse dia, você tava mais bêbado que o Hody no dia que ele tatuou a cara da Megan no peito e falou que amava ela...

- Ela fez ele gastar toda a grana dele em bebida pra ela naquela noite e terminou na cama do capitão aquela noite...

A risada alta se seguiu entre os três homens, conforme Sebastian finalmente abrir a porta da cabine e saía, encarando os três marujos que conversavam alto.

- É...hum-caham... Capitão! – disse o último, com um cumprimento breve e levemente desconcertado ao perceber que ele provavelmente havia ouvido.

O imortal simplesmente abriu seu sorriso habitual, olhando para ele e pousando a mão pesada sobre seu ombro, com dois tapas leves – Acordaram animados pelo jeito... E vagabundos. Acredito que se em 10 minutos eu for verificar o convés ele vai estar brilhando para a partida, certo?

-  É... Claro capitão, eu... Eu vou ali me certificar disso, só pra ter certeza... – respondeu ele com seu sorriso amarelo, logo correndo para as escadas que levavam ao convés principal, segurando o chapéu.

Sebastian se contentou em apenas rir categoricamente com a situação, voltando a atenção para os outros dois que faziam o mesmo, mas sem qualquer discrição.

- Então, andou encontrando uma sereia, Jordi?

- Ah, não senhor... Eu acho que era alguma habitante do reino das profundezas – disse o primeiro rapaz novamente, aparentemente animado por contar a história novamente – Foi enquanto estávamos no Tridente, o capitão me mandou cuidar do navio, e eu vi ela saindo – continuou – Esses dois gambás marinhos não acreditam, mas tem algo lá embaixo, eu já ouvi falar. Alguns dizem que era um reino antigo e esquecido que foi submerso quando o oceano se ergueu, mas seus habitantes se acostumaram e passaram a viver lá embaixo. Outros que o próprio Uno o criou, junto com tudo e todos que estão lá... Mas em qualquer história, dizem que lá vive esse povo diferente de tudo que já ouviram falar, assim como terrores e monstros capazes de fazer com que qualquer outra criatura marinha pareça no máximo um bagre do vale...

Ele se interrompeu, percebendo que Sebastian e o outro pirata o encaravam. Uma risada se fez por um momento entre eles, até mesmo do próprio Jordi.

- Ah que se foda – disse ele – Ele tá lá, vocês acreditem ou não. Eu vou voltar pra cozinha, se precisar, sabe onde me encontrar.

O capitão se recompôs, deixando apenas o habitual sorriso destacado em seu rosto enquanto passava pelo último pirata que ainda ria da história, cumprimentando-o com leves tapas no ombro enquanto se afastava em direção à amurada. Finalmente sozinho, deixou que sua feição finalmente o refletisse verdadeiramente. A expressão séria, serena e um tanto sem emoções, enquanto ainda pensava no que o velho cozinheiro havia dito. O olho sob o oceano, um reino submerso, terrores marinhos... Depois de tudo que já havia presenciado, aquilo não lhe parecia nada absurdo. Teriam alguma ligação? Por que agora?

A partida se daria em breve, mas tinha certeza que aquilo ainda lhe incomodaria por um tempo.