Kalam escapou das ruínas enquanto as bestas ainda estavam adormecidas pelo efeito de sua magia, um sono sereno e profundo, muito diferente da hostilidade que elas pretendiam contra ele. Com o livro em mãos, se afastou até encontrar a segurança do deserto, o que naquelas terras ermas só podia ser encontrado em cavernas e paredões de pedra. Montou um acampamento na sombra de uma rocha, apoiado em areia endurecida. A calmaria permitiu que finalmente desse uma boa olhada naquele livro: uma capa como escamas de dragão, um tom avermelhado e poeirento, além do poder que podia sentir emanando através dele. Sentia pena por tudo que deveria estar enterrado e esquecido no deserto, junto com o que deveria ter sido desperdiçado com o tempo, dado o temor dos nativos com magia.

Enquanto passava o dedo através das páginas, folheando por imagens e escritos, Kalam pôde perceber que o conhecimento pertencia a outro tempo — havia um professor em Arzallum, cujo nome não se recordava, que dizia ser capaz de conversar com os autores através de seus livros. Avallac deve ter odiado a violência com a mesma veemência que Kalam sentiu a princípio, pois ele o sentia através dos escritos e representações de seu poder.

O livro era tão antigo quanto seu conhecimento era críptico, mesmo um arcanista experiente como ele, que se orgulhava de ter um conhecimento expandido da magia graças a seu sangue, conseguia entender pouco do que era dito e teorizado através daquelas páginas. Mas viu Uras com clareza e isso só fez aumentar seu senso de responsabilidade, o dever que tinha de proteger o deserto.

Tentou chamar o deus para o ajudar, mas sem sucesso. Conseguia compreender pedaços isolados mas juntá-los, a princípio, era como colocar um quadrado num encaixe redondo. Normalmente, teria deixado sua mente trabalhar nas entrelinhas, mas não havia tempo, lidar com o grimório era sua última tarefa imediata antes de voltar a Krieger.

Apesar de ter recebido o poder de Uras, tinha pouca familiaridade com seu uso, sem ter testado sequer os efeitos da  ampulheta que agora carregava em forma diminuta. Além do desconhecimento, havia o receio do que poderia fazer com tamanho poder. Decidiu afastar as preocupações da mente — nesse aspecto, preferia o Kalam de outrora, ser inconsequente por vezes o tinha ajudado a evitar rodeios desnecessários, como o que enfrentava agora. Não havia nenhuma técnica, oração, meditação ou mantra que pudesse repetir para acalmá-lo, simplesmente tinha de fazê-lo.

Tentou ler novamente o grimório, buscando referências comuns de magia que podiam ser reconhecidas independentemente da época que o livro tinha sido escrito, como aprendido em Arzallum. Naturalmente, tudo seria mais fácil se não tivesse deixado de assistir tantas aulas, seu talento não podia compensar pela falta de compromisso que tinha à época. Conseguiu reconhecer o fogo, um elemento que não dominava, mas que reconhecia de usos passados do Kina Drakir, representado numa onda vermelha que reconheceu como a demonstração da técnica, nas páginas seguintes a representação em que Uras tinha um aspecto de adoração religiosa. Fogo, de certa forma, caminhava numa direção diferente da Terra, seu elemento de domínio, onde um era sólido o outro por vezes era dito e reconhecido, por outros amigos de academia, como espiritual. Claro, o ceticismo nunca o deixara acreditar naquela visão do elemento, mas com o tempo ele entendera o que quiseram dizer, que o fogo era como o vapor, enquanto a terra era como o gelo — na magia, nem tudo era tão instintivo quanto no mundo se magia, de modo que o primeiro instinto, mais racional, sempre era de rejeitar o senso comum, o fogo encontrado na natureza, em sua experiência, se diferenciava em muito daquele feito por mana. Deixou a anotação mental guardada numa das gavetas importantes, pois por ora pretendia apenas entender o funcionamento da técnica, antes de se arriscar executando ela.

Chamou novamente por Uras, novamente sem resposta. Desistiu de chamá-lo, estava por conta própria naquilo. Segurou a ampulheta entre a palma das duas mãos, observando o fluxo do tempo correr através dela, correndo como fogo descontrolado, igualmente perigoso, igualmente volátil. Mais adiante, folheando, percebeu que teria de juntar ambos: o fogo e o tempo na mesma técnica. Entre muitos segredos indecifráveis, Kalam pode ver através de dois deles, a técnica de Avallac e a proficiência mencionada, de encurtar a conjuração através do domínio temporal. Mas entre ver e entender parecia existir um gigante abismo, uma que evocava, naquele momento, grande frustração em Kalam, por não entender de imediato a técnica. Parecia que até mesmo numa área que era de seu domínio, o deserto lutava contra ele. Fora assim durante toda sua estadia.

Resolveu dar um tempo de descanso a si mesmo, pois apesar da pressa era inútil forçar-se através de um terreno, até então, infértil.

Observou as estrelas, até que, carregado pelo tempo, dormiu. A iminência de sua volta a Krieger trazia conforto, portanto, apesar de ter sido um sono breve, ele despertou renovado. Tinha dormido abraçado com o grimório, como se a proximidade pudesse adiantar o processo.

As palavras e imagens antes desconexas, agora passavam a fazer um pouco mais de sentido, então bastou ligar os pontos do que já sabia, o tempo, o fogo, tudo estava na mesma técnica, assim como o segredo acerca da conjuração. Para compensar a inexperiência com o fogo, tentou absorver o calor do deserto, canalizar através da sua mana o que sentia pelo corpo, o suor, a pele seca, todos os impactos do calor fustigante de Havir. A rocha na qual mirou sua magia recebeu apenas um chamuscado e nada mais, ficando com um borrão preto na superfície, mas intacto senão por isso. Na segunda vez, aproveitou para compensar o poder faltante da primeira tentativa, em grande parte um receio do que a técnica poderia causar naquele clima árido. O sucesso veio apenas com um gosto amargo, pois embora Kalam tivesse conseguido incinerar a rocha, isso só veio com inúmeras tentativas, mas foram nessas que surgiu um lampejo muito sútil do efeito da técnica — a rocha parecera ter sido restaurada, como se voltasse no tempo, mas em outro uso parecia diminuta, ainda mais seca e fragilizada. Depois de tamanho esforço, o verdadeiro desafio residia em tentar reproduzir o sucesso, que nas vezes anteriores havia sido resultado de uma mescla de sorte e insistência. “Certo”, disse para si mesmo, encontrando outra rocha, ao mesmo tempo se perguntando se isso feria alguma crença ou tribo do deserto, se seu ataque contra as rochas representava uma falha em seu dever como guardião — afastou rapidamente esses pensamentos, voltando à magia, agora que já conhecia a quantidade exata de poder necessária às chamas e quanto ao tempo, sentiu o fluxo através da ampulheta, a única conexão que mantinha com Uras já que ele não o respondia. Aquela vez sintetizaria todas as anteriores e foi assim que aconteceu. A rocha se acendeu e com o queimar da chama, avançou no tempo até a inexistência. Avallac, anotou mentalmente, contemplando a criação do homem, pesquisaria mais sobre ele posteriormente.

Tendo conseguido consciente uma última vez em suas tentativas, Kalam estava seguro para tentar mais vezes. Tentou reproduzir noutras rochas, ainda sentindo uma pontada de culpa ao imaginar as possíveis implicações nos povos do deserto descobrindo sua mácula, mas reprimindo o sentimento enquanto carbonizava pequenas rochas próximas. Repetiu e repetiu, cada vez com mais segurança, cada vez mais rápido, como se pudesse agitar os grãos de areia dentro da ampulheta mais rapidamente. “Porra”, resmungou, suspirando de cansaço, segurando o grimório contra o peito, alternando entre suspiros e longas arfadas. “Preciso voltar.”